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ARTIGO – Nos bolsos dos avós
Aos cem anos da imigração japonesa para o Brasil, é necessário destacar seus hai-kais, poemas muito simples, fruto da contemplação da natureza, estimulada pelo zen-budismo. Quem iniciou esse gênero literário foi Matsuo Bashô, em 1644. Viveu em sua casa o rigor de um guerreiro e de austeros costumes. Sua família pertencia à casta dos samurais. Havia um daímio que governava sua família e seu pai encontrava-se a seu serviço. O filho do daímio, Sengin, e seu mestre Kingin, ensinaram a Bashô a arte da poesia. No Japão o hai-kai é sinônimo de devoção. Bashô transmite, em seus poemas, sua contemplação do mundo. Simples e puro, quase um asceta, consagrou sua vida ao hai-kai.
Nesta noite Viagem de anciões,
Ninguém pode deitar-se: cabelos brancos, bastões,
Lua cheia. Visita às tumbas.
Buson, pintor famoso, nascido em 1715, deu ao hai-kai um aspecto romântico. Escreveu mais de 2000 poemas. Procurava a perfeição e expressava muita ternura.
Vou até às cerejeiras Um rouxinol! …
Dormir sob seus capulhos, E na hora do jantar
Sem deveres. A família reunida.
Mais tarde, 1763, nasce Issa. Perdera a mãe aos três anos e fora mal amado pela madrasta. Possuído pela solidão, passou a identificar-se com as coisas inanimadas, a seu ver, também órfãs. Ama os lugares, os animais, os insetos, valorizando a existência. Casa-se, tem cinco filhos, que falecem ainda jovens. Depois falece sua esposa. Doente, mas querendo ter um filho, casa-se de novo, porém morre antes de nascer a filha Yata.
Atirar arroz Na velha casa
É também pecado: que abandonei
As aves brigam entre si. As cerejeiras florescem.
Issa atingiu, com sua percepção poética, tudo aquilo que se achava espezinhado pela ingratidão, pelo sofrimento e pela incompreensão.
No Brasil, temos vários poetas aficionados nesse gênero. Naturalmente, permanece a tomada poética instantânea e leve, mas trazendo já alterações formais. Entre esses autores constam: Paulo Leminski, Helena Kolody, Millôr Fernandes, Áurea de Arruda Feres, Alice Ruiz, Paulo Franchetti, Fanny Luiza Dupré.
Millôr
Nos dias quotidianos
É que se passam
Os anos.
A palmeira e sua palma
Ondulam o ideal
Da calma.
Paulo Franchetti
Flamboyants floridos
Até a luz do céu
Parece mais bela.
Manhã de frio –
com o agasalho, visto
Saudades de minha mãe.
Leminski
Morreu o periquito,
A gaiola vazia
Esconde um grito
o mar o azul o sábado
liguei pro céu
mas dava sempre ocupado.
Saulo Mendonça
À tarde, no porto
Eles se amavam
E ficavam a ver navios.
Paulo de Arruda Féres
Num vaso solitário
perfuma toda a sala
Um único jasmim.
Fanny Luiza Dupré
Estrela cadente
No seu rastro luminoso
Um desejo meu.
Alice Ruiz
Fim de tarde
Depois do trovão
O silêncio é maior.
O hai-kai é um poema curto, de 17 sílabas, formado por versos de 5, 7 e 5 sílabas, mas nem todos obedecem exatamente a essa medida. Para compreendê-los, é preciso pensar como um japonês: aproximar-se da natureza, com um amor quase panteísta, saboreando as lições de ética que ela oferece. A experiência de leitura meditativa dos hai-kais, ou sua criação, gera estados de espírito como: humor, liberdade, simplicidade, solidão, abnegação, gratidão, amor, coragem.
Massao Ohno, autor de O Livro dos Hai-Kais, afirma que “nos bolsos pobres de seus avós vieram também as sementes de um sentimento poético eterno.” Hai-kais, origames, ikebanas, mangás, sudoku, são alguns dos traços culturais japoneses, entre muitos outros, presentes entre nós.
*Mestre em Lingüística Aplicada, membro da Academia de Letras do Vale do Iguaçu (Alvi), professora de Língua e Literatura nos cursos de Secretariado Executivo e Comunicação Social, e presidente do Conselho Editorial da Uniuv.
Esclareça suas dúvidas. Mande sugestões para esta coluna pelo e-mail prof.fahena@uniuv.edu.br
Esse texto foi originalmente publicado na coluna Questões de Estilo, da edição impressa nº. 2.006, e na edição on-line nº. 506 do Jornal Caiçara, de 1º de agosto de 2008.
por: UNIUV
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